Cortiços: o mercado habitacional de exploração da pobreza
Parece inacreditável a constatação de que os problemas
que existiam nos cortiços no início do século 20, conforme estudos e
jornais da época, sejam os mesmos dos dias de hoje, como a grande
concentração de pessoas em pequenos espaços; um único cômodo como
moradia; ambientes com falta de ventilação e iluminação; uso de
banheiros coletivos; instalações de esgotos danificados; falta de
privacidade; e o fato de comporem um mercado de locação habitacional de
alta lucratividade. O artigo é de Luiz Kohara.
Luiz Kohara (*)
A habitação constitui um dos mais graves
problemas sociais da cidade de São Paulo. Dentre os inúmeros fatores
explicativos estão os baixos salários dos trabalhadores, o alto custo da
terra urbanizada e a insuficiência de políticas públicas destinadas às
favelas, aos loteamentos precários e, particularmente, aos cortiços.
Consequentemente, as condições precárias de moradia têm reflexos
perversos na vida das pessoas, pois a habitação é uma das bases
fundamentais da estruturação da vida.
A realidade dos cortiços é
bastante complexa não apenas por causa do conjunto de situações
precárias vividas por seus moradores – basicamente, espaços reduzidos e
falta de qualidade de vida –, mas também pelas condições exploratórias
dos valores dos aluguéis no acesso a essas moradias.
Parece
inacreditável a constatação de que os problemas que existiam nos
cortiços no início do século 20, conforme estudos e jornais da época,
sejam os mesmos dos dias de hoje. Dentre eles, destacam-se a grande
concentração de pessoas em pequenos espaços; um único cômodo como
moradia; ambientes com falta de ventilação e iluminação; uso de
banheiros coletivos; instalações de esgotos danificados; falta de
privacidade; e o fato de comporem um mercado de locação habitacional de
alta lucratividade.
Além desses aspectos, os cortiços mantêm as
características de estarem, predominantemente, localizados nos bairros
centrais da cidade, apresentarem diversas situações de ilegalidades e os
seus moradores terem salários insuficientes para acessarem moradias
adequadas. Os cortiços, diferentemente das favelas e de outras moradias
precárias, quase não são visíveis na paisagem urbana, porque, em geral,
são edificações que foram utilizadas como moradias unifamiliares, mas
que atualmente abrigam dezenas de famílias. Logicamente, tornam-se
visíveis sempre quando há interesse do capital imobiliário na região
onde os cortiços estão instalados, porque seus moradores são os
primeiros a serem expulsos. Nos últimos 20 anos, somente o Centro Gaspar
Garcia de Direitos Humanos acompanhou mais de 200 despejos coletivos de
cortiços localizados nos distritos centrais.
Num estudo de 1998 [1]
sobre o rendimento obtido nas locações e sublocações de cortiços
localizados no bairro da Luz (aqui delimitado pela avenida Tiradentes,
rua Mauá e avenida do Estado), pôde-se verificar a grande exploração que
se dá no mercado de locação de cortiços, confirmando informações de
outras pesquisas que demonstravam que paga-se caro para morar muito mal.
Nesse perímetro, foram encontrados 92 imóveis utilizados como cortiços,
onde residiam 765 famílias, com o valor médio de locação de R$ 13,2 por
m2, valor que representava mais que o dobro que o de moradias
unifamiliares com boas condições de habitabilidade localizadas no
Centro.
Foi verificado que enquanto no mercado formal o valor
mensal do aluguel representava cerca de 0,8% do valor do imóvel, nos
cortiços pesquisados o explorador chegava a arrecadar mensalmente até
3,25% do valor do imóvel. O mais grave é que o percentual do rendimento
crescia quanto maior fosse a precariedade do cortiço.
Em 2012, passados 14 anos, nova pesquisa [2]
na mesma área com os 92 cortiços pesquisados em 1998 verificou que 44
imóveis (48%) deixaram de ser utilizados como cortiços e 48 imóveis
(52%) mantiveram esse uso. Além desses, mais 56 imóveis passaram a ser
utilizados como cortiços, totalizando 104 cortiços na área, um aumento
de 13% em relação a 1998. Verificou-se também um maior adensamento: o
número de famílias passou de 765 para 995, um crescimento de 30%. Esse
resultado pode ser indicativo de um dos motivos que justifica o
crescimento positivo dos distritos centrais, conforme o Censo IBGE 2010,
que desde a década de 1980 vinham apresentando taxa negativa de
crescimento.
Outros aspectos bastante relevantes encontrados na
pesquisa atual são: crescimento da escolarização dos moradores, grande
número de famílias de origens paraguaia e boliviana e altos valores
cobrados na locação das moradias. É interessante observar que, por causa
da irregularidade da documentação dos estrangeiros, o valor da locação é
maior para os bolivianos e mais alto ainda para os paraguaios; algumas
famílias estrangeiras pagam R$ 700 por pequenos cubículos. Se levarmos
em conta o metro quadrado, concluímos que o valor da locação de moradia
em cortiços, que em média possuem 12 m², continua sendo o mais alto da
cidade de São Paulo.
Vale destacar um aspecto relevante apontado pela pesquisa de 2009 [3]:
os resultados escolares apontaram que as crianças moradoras em cortiços
possuíam quatro vezes mais chances de serem reprovadas quando
comparadas com outros alunos da mesma série. A falta de espaço para
dormir adequadamente, a insalubridade das moradias sem janelas, a
rotatividade habitacional e a porta de entrada sempre aberta atingem
diretamente o desempenho escolar das crianças. Ficou evidente que as
condições precárias da moradia eram fatores de limitação para os estudos
e geradoras de discriminação e segregação social e, consequentemente,
de evasão escolar.
Um aspecto fundamental a ser apontado é que os
trabalhadores de baixa renda tornam-se reféns dos exploradores de
cortiços na medida em que buscam locais mais favoráveis ao trabalho ou
próximos dos benefícios produzidos pela cidade.
Por outro lado,
os moradores de cortiços tornaram-se importantes atores sociais quando
formaram movimentos para reivindicar o direito à moradia digna no centro
da cidade e, principalmente, quando utilizaram a estratégia de ocupar
edifícios vazios. Isso porque denunciam a falta de política de habitação
de interesse social para as áreas centrais da cidade e expõem as
contradições do setor imobiliário, que deixa os imóveis abandonados sem
função social aguardando valorização.
Apesar da luta e
mobilização empreendidas nos últimos 20 anos, pode-se afirmar que as
inúmeras expressões da precariedade das moradias, o comprometimento de
grande parcela da renda e a segregação social que sofrem seus moradores
são fatores que fazem com que os cortiços sejam um fator para reprodução
da pobreza e ampliação da desigualdade social.
[1] KOHARA,
Luiz Tokuzi. Rendimentos obtidos na locação e sublocação de cortiços:
estudo de casos na área central da cidade de São Paulo. Dissertação de
Mestrado. São Paulo: EP USP, 1999.
[2] Pesquisa de Pós-Doutorado FAU/FAPESP de Luiz T. Kohara (em andamento).
[3]
KOHARA, Luiz Tokuzi. Relação entre as condições da moradia e o
desempenho escolar: estudo com crianças residentes em cortiços. Tese de
doutorado. São Paulo: FAU-USP, 2009.
(*) Luiz Kohara é membro do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, engenheiro-urbanista e pós-doutorando FAU/FAPESP.