Os (des)caminhos das Conferências
“Vá ao encontro do seu povo,
Ame-o,
Aprenda com ele,
Planeje com ele,
Comece com ele aquilo que ele sabe,
Construa sobre aquilo que ele tem.”
(Kwame Krumé)
Escrevo esse texto pensando em dialogar com as Conferências dos Direitos das Crianças e Adolescentes, mas como o formato das Conferências, de forma geral, tem sido quase a mesma, penso ser possível trazer um conjunto de inquietações que vão além das que tenho assistido nas conferências, no entanto acabarei analisando mais detalhadamente sobre os formatos que as conferências tem se dado.
Tenho comentado em textos que as Conferências precisam ter sentido e o primeiro e mais relevante sentido é possibilitar a participação popular, desta forma estaremos respeitando a soberania do nosso povo. Sobre este aspecto, uma das grandes contradições de todas as Conferências, que a despeito de justificar ampla participação, garante-se mínima participação, já que em via de regra as conferências pré-estabelecem quem deve participar, sendo excluídos deste processo aqueles que não estiverem em entidades, não estiverem organizados em coletivos já reconhecidos pelo governo ou quem não estiver em governo.
O exemplo mais bizarro de todas as conferências, é a de comunicação, que estabeleceu um critério de status especial para os empresários de comunicação, além de todas as distorções dos critérios para participação, reconhecendo que existe um evidente privilégio para a classe que detém o poder econômico dentro da chamada “democracia burguesa”. Garantiu-se, então, uma cota mais que desproporcional aos donos das empresas de comunicação (1/3 do total dos delegados), que tem uma autorização pública de funcionamento e uma das discussões que iria acontecer na Conferência de Comunicação , era à cerca dos marcos regulatórios, inclusive para a outorga de concessões de veículos de comunicação, os quais atingiriam diretamente os seus interesses. O resultado pratico , foi praticamente nulo, pelas diversas manobras realizadas pelos empresários e pelo governo.
Com essa estrutura de participação, que se “justifica” em uma falsa idéia de organização, define-se, então, quais são os interesses que serão tratados, os quais representam determinados agrupamentos em detrimento dos interesses do povo brasileiro. Assim, tão falada democracia direta, ou popular, que se reivindica quando da realização das conferencia, na prática não ocorre, pois a maioria dos considerados “representantes” do povo estão pouco preocupados em de fato defender a autonomia e participação popular. Até mesmo anterior a isto já se observa que os critérios já excluíram todos e todas aqueles e aquelas que de fato são os que teriam o maior interesse na participação, que são os mais afetados pela ausência ou fragilidade da política.
Essa configuração impõe ainda mais restrições, pois ainda segmenta a participação por agrupamentos, fragmentando a discussão da política. Isto, no caso da infância e adolescência é uma grande contradição que contraria o estabelecido no Paradigma da Integralidade e subtrai a responsabilidade do conjunto da população no cuidado do público infanto-juvenil para que se efetive os direitos humanos das crianças e adolescência.
Verificamos que usualmente os representantes dos segmentos, que já é algo muito débil, criam um distanciamento quase insuperável do conjunto da população, , criando metalinguagens, e de forma autoritária se impõem como representantes do povo devido a autoafirmação destes como sendo conhecedores do assunto, reivindicando esse conhecimento de causa para ser legitimo em sua representação de entidades, as quais boa parte das vezes, são compostas por meia dúzia de pessoas sendo a maioria detentora de baixo poder de decisão em detrimento do seu representante maior - alguém que “elabora” para organização ou ocupa cargo de direção - logo todo um outro discurso declarado em mesas de debates, congressos, seminários, assembléias etc. Quando falam em controle social, (ooops! Porque social? Porque não Popular?) é simplesmente uma peça retórica, para usurpar a representatividade de quem deveria ser o verdadeiro representante!
A outra participação indevida tem sido as dos representantes do estado. Antes de tudo devemos nos pergunta sobre o que é o estado ? Estado é o aparato burocrático, que organiza e executa a política pública e este deve atender os interesses do povo, chamado de Poder Instituinte, ou seja, o povo, teoricamente construiu o estado, ou ele só existe em decorrência do povo, deduz-se, então, que o povo é o principal Poder de um país,não podendo aqueles que devem servir ao povo submeter o povo aos próprios interesses. O que nos leva a entender, que a participação paritária ou em grande proporção, que se aproxima da representação popular, distorce, subestima a participação do povo, superestimando a participação dos representantes do estado, aquele que está constituído para realizar a vontade do povo e não ao contrário, logo o papel dos representantes do estado em conferências deve ser consultivo e não deliberativo e em número restrito, permitindo assim a expressão maior daquele que é o depositário das ações que o estado irá desenvolver, respeitando assim a reflexão que a filosofa Marilena Chauí faz a respeito do estado, que o político deve pautar o técnico, não o técnico pautar o político, logo, a participação de agentes do estado nas conferências na proporção e na qualidade de participação é absolutamente contrário a manifestação do maior Poder Político que é o Popular!
Ainda sobre esse ponto, é necessário compreender que, apesar de teoricamente, o estado deve funcionar em consonância com os interesses do povo e no nosso país ele se organizou de acordo com os interesses da elite. Para estabelecer essa escolha, o estado criou uma estrutura burocrática impermeável ao povo, que impede qualquer possibilidade de mudança da estrutura econômica desse país, já que a distribuição da riqueza passa, principalmente, pela mediação do estado. O grande exemplo disso é que 7 das 10 grandes empresas do país, são financiadas com recursos do BNDES-Banco Nacional de Desenvolvimento, o que fica claro uma escolha da máquina burocrática do estado em destinar recursos para a elite.
Torna-se, assim, fundamental desconstruir essa lógica, definindo que tipo de política queremos, em que marcos regulatórios e quais as prioridades da aplicação dos recursos públicos e só o faremos podendo soberanamente decidir.
Uma questão não menos importante e que tem sido delicada, principalmente para aqueles e aquelas que atuam e trabalham na área da infanto-adolescência, é a participação deste público nos processos decisórios. Muito embora a lei reconheça a criança e o adolescente enquanto cidadãos (logo, deve ser reconhecido enquanto sujeito político), insistentemente são impedidos de participarem das conferencias ou a participação deles é controlada, sendo argumentado utilizado pelos adultos que as crianças e adolescentes são imaturos para participar desses processos, o que é contraditório com o próprio segmento que se “organiza” para defender os direitos humanos das crianças e adolescentes, o que fica evidente é a falta de proposta pedagógica que responda a necessidade e acolha a participação dos meninos e meninas.
Ora tais argumentos estão obviamente estruturados no velho paradigma menorista, que estabelece a tutela da criança e do adolescente ao universo adulto, bem como a incapacidade de realização humana fora do julgo adulto, indicando a idéia de que são os adultos quem sabem o que é melhor para as crianças e adolescentes, fortalecendo o velho conceito que se deseja superar que é o do adultocentrismo, bem como atestando a incompetência dos tais “defensores” e trabalhadores da área que, com essa prática, denunciam-se violadores dos direitos, já que em seu cotidiano não respeitam e não potencializam a participação infantil e juvenil, já que passados duas décadas da lei em vigor, continuam com as velhas praticas, já que não sabem lidar com a afirmação da subjetividade das meninas e meninos,não criando metodologia para a efetivação e afirmação objetiva do sujeito-cidadão criança, sujeito-cidadão adolescente .
Essa posição trai todo o discurso equivocado, mas que tenta se orientar no dialogo com a lei, que é o do protagonismo-juvenil, declarando-se aquilo que minimamente não se faz!
Outro grande problema na ausência de proposta consolidada da participação de meninos e meninas nas conferências, é que perdemos a oportunidade de desencadearmos amplos processos educativos à cerca dos direitos e compreensão de uma outra forma de sociabilidade por parte das crianças e adolescentes, ou seja, deixamos de fazer um bom investimento educativo que incidiria na cultura que queremos construir.
A segunda questão importante a se colocar nesse debate, diz respeito a forma que são convocadas as conferências, que viola flagrantemente o Pacto Federativo, já que a CF-Constituição Federal de 1988 reconhece acertadamente o município enquanto ente federativo, logo com autonomia para efetivar as suas necessidades. Tal definição é acertada, na medida em que uma sociedade democrática deve entender que a construção da sua soberania deve respeitar a autodeterminação do seu povo, que se efetiva na participação das decisões, principalmente no local aonde está estabelecida a sua vida, e o lócus principal, é a cidade! Entende-se assim, que não existe outra possibilidade para consolidação da democracia se não reconhecer a cidade.
Se assim entendemos, passamos a ter um grave problema, que é na verdade um grande conflito entre postura autoritária, reforço e aperfeiçoamento das estruturas constituídas pela ditadura , e a impossibilidade de realização da democracia, visto que os Conselhos Nacionais , incluindo o da Criança e do Adolescente – CONANDA, convocam de cima para baixo as conferências, que poderia não ser um problema se não pré-estabelecessem temas, pois desta forma desconsideram as especificidades de cada município, desestimulando a mobilização local, sendo que as temáticas propostas quase sempre, não dialogam com a compreensão da população de forma geral, pelo uso de metalinguagens no chamado, além de não atenderem aquilo que o município entende ser os problemas a serem tratados localmente.
Essa situação, que descasa as temáticas das realidades, deslegitima e impede que o processo de construção das conferencias seja rico e que faça sentido para o povo e que permitiria a participação real, impossibilitando o processo de educação política e de apropriação da população de sua realidade. Impede também que a população decida sobre os rumos da sua infanto-adolescência, tornando assim inviável o controle social da sociedade sobre as políticas, já que ele só é possível de ser concretizado quando se conhece todo o processo que levou a construção da política.
Se esse processo não foi realizado, que não dialoga com as necessidades reais da população, o controle sobre o que não se conhece não acontecerá.
Ainda sobre essa participação controlada e tutelada, ela acaba com a possibilidade do conjunto da população em se comprometer com a efetivação dos direitos da criança e do adolescente, já que ao não incluir a população nessa discussão, não possibilita a compreensão do novo paradigma, que implica em uma radical mudança de cultura, logo essa função de educar a população para o novo trato com os meninos e meninas, não se realiza.
Toda e qualquer justificativa que se utilize do argumento que a estrutura do estado impede o avanço no modelo de Conferências, é falácia que reforça,o que já foi falado no texto, que é o modelo autocrático em que foi sendo estruturado no seio do estado, como nos alertou Florestan Fernandes em seu livro, A Revolução Burguesa no Brasil, identificando que essa estrutura sempre irá privilegiar os interesses de uma classe social que detém o poder econômico, em detrimento dos reais interesses do povo.
Para agravar ainda mais a situação, os Conselhos não conseguem organizar um calendário coerente de conferencia, dando demonstrações claras que não entenderam para o que servem as conferencias. Olhando a periodicidade de realização das Conferências, bem como as temáticas tratadas, logo se vê que não existe muita possibilidade de realização das decisões das Conferências. Volto a analise em especifico das Conferencias da Crianças e do Adolescente.
A primeira questão a se questionar é que as temáticas das Conferencias DCA tem rasgado um dos princípios do ECA, que é o da Integralidade no olhar com a criança e o adolescente , portanto, a primeira Conferencia deveria ser uma que desse conta de pensar a integralidade das políticas destinadas para as crianças e adolescentes, logo pensando fragmentadamente a infanto-adolescência , tirando o sentido do previsto em lei, fragilizando a possibilidade de pensar a universalidade de como cuidar dos meninos e meninas.
Uma situação grave é sobre o que se entende sobre política pública. O que é possível perceber é que absolutamente nada, já que a propositura dos Conselhos acontece, para romper a lógica da forma como se elaboram as políticas, que sempre respondem aos interesses dos governos em pequenos ciclos de 4 anos, que ficou consagrado como política de governo, em contraposição, os Conselhos pensam políticas de estado, que ultrapassa a idéia de políticas pontuais e ampliando pela necessidade de impactar pela permanência, que a necessidade pode impor revisão, mas nunca a extinção abrupta por uma mudança de governo, priorizando uma temporalidade de uma geração, ou seja, 20 anos que é o tempo em que uma geração pode formar outra geração.
Avaliando a lógica em que estão pensados os Conselhos e as Conferências, que são espaços da auto-determinação e soberania do povo, já que não deveria ter intermediários na primeira etapa, a duração de uma conferência não pode ser estabelecida de forma simplista em dia, o que deveria determinar o tempo de duração de uma conferência , deveria ser a importância do tema, como por exemplo, o atual tema da Conferencia da Criança e do Adolescente, que construirá os Planos Decenais, como trata-se do planejamento de 10 anos da política para o segmento, não poderia ser essa conferencia ser realizada em dois, três dias sem a devida compreensão do que se trata e do envolvimento dos diversos atores da sociedade, logo a necessidade de escolas, entidades, associações de bairros, a saúde, a assistência social, os usuários dos serviços, todo o conjunto da sociedade está envolvida.
É importante destacar, que a reflexão não pode ser simplista, não se pode tentar pensar um impeditivo para o processo de conferencia, a questão espacial, pois os opositores da democratização das conferencias sempre usarão esse argumento reducionista da limitação espacial para a ampla participação popular, com esta falsa polêmica para desviar o foco do debate central, que é de fato a participação do povo nas conferências. Por isso não penso a conferência final como o fim em si mesmo, mas como parte de um processo, que tem inicio com ampla mobilização primeiro através dos meios de comunicação, segundo mobilizando em debates , conversas, construindo pré-conferências nas comunidades em todo lugar possível de mobilizar o povo, deixamos de entender a Conferência como um evento e sim como uma construção que vai envolvendo toda a comunidade, promovendo, legitimando, educando, reconhecendo os sujeitos invisíveis para os eventos, que serão aqueles para as quais as políticas serão construídas, portanto o sentido estará sendo construído e compreendido por todos e todas.
Se de dois em dois anos, as conferencias não fazem sentido, exatamente por falta de uma pauta que fosse compreensível as pessoas de forma geral, com uma metodologia e critérios que não dialogam com as realidades do Brasil, a sua periodicidade perdem ainda mais o sentido, na medida em que esta em desencontro, com o Ciclo Orçamentário.
Uma observação importante é entender a importância manter uma dinâmica de conferências, porém ela precisa fazer sentido, o sentido , que começa com a mobilização, passa pela apropriação do conteúdo e realidade, processo decisório e a realização das decisões que começa a acontecer , quando tem previsão no orçamento. Completado esse processo , é possível desencadear uma cultura de controle da execução da política.
Diante do que temos verificado, os Conselhos não se debruçam a pensar seriamente esses processos, o que esvaziou o sentido das Conferencias e diante dessa óbvia constatação, procuram remendar da pior forma possível , não alterando a lógica da falta de sentido, foi isso que aconteceu na mudança que o CONANDA fez, com o conteúdo e com a periodicidade das Conferências, mudou para nada mudar , não saberá o CONANDA justificar logicamente , porque além de intervir indevidamente na dinâmica das conferências municipais, por que propôs a Conferência três anos antes do inicio do Ciclo Orçamentário. Perguntas são muitas, mas temos que se não fazer todas , precisamos ao menos colocar a principal.
Como será garantido a mobilização até 2013, para que as decisões de conferência constem do Plano Plurianual e as poucas pessoas que participam das Conferências, não fiquem com o sentimento de que nada aconteceu ?
Pode o CONANDA e outros Conselhos,não responder a essa minha longa inquietação, não precisa, mas é importante que nois militantes e o povo comece a refletir seriamente sobre esse espaço , que poderá vir a ser um espaço importante da expressão da soberania e autoderminação do nosso povo.
Finalmente, penso que não pensar nessas questões é não querer de fato enfrentar problemas já constatados que encontramos na lógica da organização do estado e da destinação e distribuição da riqueza em nosso país. A conseqüência imediata é que o caminho que vem sendo feito, não contribue na efetivação dos direitos, podemos continuar no faz de conta, mas temos que saber que o caminho está totalmente errado.
P.S. Ao fechar esse texto, recebo um novo calendário de Conferências da Criança e do Adolescente definido pelo CONANDA, que confunde ainda mais e atesta definitivamente , o quanto esses Conselhos não sabem o que estão fazendo , já que os municípios foram desmobilizados para a realização no primeiro semestre as conferências e nada foi colocada em pauta , logo a falta de sentido será ainda maior do que já é.
Givanildo(Giva) Manoel da Silva
Militante de Defesa dos Direitos Humanos da Criança e do Adolescente e do Tribunal Popular: o estado brasileiro no banco dos réus
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