A "Cidade Submersa": Vila Itororó e suas memórias
Impulso Coletivo apresenta o espetáculo Cidade Submersa, que retrata a história da vila urbana mais antiga de São Paulo
12/08/2011
Patrícia Benvenuti
Da redação
Um espetáculo sobre memória, cidade e, sobretudo, moradores e suas histórias. A partir desses temas, a companhia de teatro Impulso Coletivo apresentará, nos dias 20 e 21 de agosto, em São Paulo, o espetáculo Cidade Submersa, cuja inspiração é a Vila Itororó, a vila urbana mais antiga da capital paulista.
Localizada no bairro do Bixiga, centro de São Paulo, a vila é alvo de uma disputa há vários anos. De um lado está a Prefeitura, que quer transformar o local em um centro cultural; de outro, cerca de 70 famílias, que lutam para não serem despejadas de onde vivem há décadas. A Secretaria Municipal de Habitação (Sehab) promete que todos os moradores serão atendidos por programas habitacionais, mas a pasta não apresentou, até agora, garantias sobre o reassentamento das famílias.
Cidade Submersa conta a história de Eliseu e Virgílio, dois personagens idosos e amigos de infância, que se reencontram depois de muito tempo. Eliseu sofre de Alzheimer, e a visita de seu amigo faz com que relembrem e reflitam sobre o lugar onde cresceram, que vem sofrendo grandes transformações. Para reencontrar esse local, guardado na memória, saem pela cidade se confrontando com suas contradições e mudanças.
O espetáculo traz depoimentos de moradores da Vila Itororó, além de cenas simbólicas que sintetizam problemas, como o ritmo acelerado do cotidiano, a especulação imobiliária, a escassez de moradia e a privatização do patrimônio público, que entrecruzam a trajetória de Eliseu e Virgílio.
A peça foi encenada pela primeira vez em maio do ano passado, na Casa das Caldeiras, em São Paulo, e as apresentações de 20 e 21 de agosto serão realizadas no Teatro de Arena do Centro Cultural da Juventude Ruth Cardoso (Avenida Deputado Emílio Carlos, 3.641, Vila Nova Cachoeirinha, zona norte de São Paulo).
Na entrevista a seguir, o diretor do Impulso Coletivo, Jorge Peloso, fala sobre o espetáculo e a relação entre a memória, espaço urbano e cultura.
Brasil de Fato - Como surgiu a ideia do Cidade Submersa?
Jorge Peloso - A ideia do espetáculo foi construída ao longo do Projeto Desassossego - suas outras memórias, que durou mais de dois anos e começou em 2008. A ideia inicial do projeto era entender como os habitantes se relacionavam com a memória e quais eram as dificuldades para se apropriar da história da cidade de São Paulo. Vivemos numa cidade de proporções gigantescas com pessoas de todos os cantos do Brasil e do mundo, dentro de um processo onde cada vez mais nos apartamos do convívio nos espaços públicos, em que as relações com as pessoas e os ambientes são frágeis e muitas vezes até a própria maneira como a cidade vem sendo pensada e planejada nos impele à alienação dela própria. Então o Cidade Submersa nasce dessas inquietações e pretendemos, com esse espetáculo, problematizar junto do público um pouco dessas questões.
Como foi o processo de pesquisa para montar o espetáculo?
Com todas essas dúvidas pairando na cabeça, partimos primeiramente para uma pesquisa teórica para entender melhor o contexto e amadurecer qual seria nosso ponto de partida. Iniciamos leituras de autores como Darcy Ribeiro, Celso Furtado, Milton Santos, Ulpiano Bezerra de Menezes e até o Vida e Morte do Bandeirante, de Alcântara Machado. Com ajuda desses autores entendemos melhor quais eram os pontos centrais da nossa inquietação sobre a importância da memória no contexto urbano. E foi com essa bagagem que, no final de 2008, tivemos nosso encontro com a Vila Itororó. O impacto visual foi imediato, e ao conversar com um dos moradores, percebemos que a Vila materializava todas nossas reflexões, e as expunha de maneira contundente e viva, e a partir daí iniciamos uma longa e intensa relação com ela. Passamos a frequentar as reuniões da Associação dos Moradores e Amigos da Vila Itororó, e junto da AMAVila, do Saju (Serviço de assistência Jurà dica - USP) e do coletivo Mapa Xilográfico, desenvolvemos várias ações culturais com os moradores e outras também para divulgar a causa da Vila. Depois de mais de um ano e meio, nossa convivência com os moradores foi íntima. E poder tecer essas relações de forma ética foi fundamental para nosso processo de criação e o influenciou completamente, aprofundando nosso olhar para compreender todas as dimensões que atravessam até hoje o problema não resolvido da Vila e de tantos outros lugares, e qual seria a melhor forma de traduzir essa experiência esteticamente.
A memória é um tema muito forte em todo o espetáculo. Na concepção do coletivo, qual a importância da memória para a cidade e seus habitantes?
A memória é algo de suma importância dentro de nossas vidas, e é por meio dela que nos tornamos quem somos, e é ela que dá sentido ao nosso processo histórico constante de construção de quem nos tornamos. Por isso, problematizar a memória e os processos de amnésia social que vivemos é fundamental, para que, refletindo, passemos a novas práticas em que ampliemos nossa relação com ela. Vivemos em tempos em que a memória também virou mercadoria e apesar de até encontrarmos discursos de incentivo à preservação, muitas vezes o que se vê é a fetichização e a monumentalização da memória, o que só dilui e pasteuriza a potência transformadora do passado materializado no presente. Porque afinal de contas é nesse confronto com o que já foi, com a diferença, que podemos caminhar para construir uma sociabilidade melhor e mais justa, reconhecendo os avanços e os retrocessos da nossa jornada. A memória é algo para ser vivenciada social e cotidianamente, não distanciada, para que nós redimensionemos nossa consciência e assim nos reconheçamos como agentes dos nossos processos históricos.
Como tem sido a recepção do público ao espetáculo?
Temos sido recebidos de forma muita generosa e calorosa pelo público, mesmo em cidades onde esses processos de urbanização são mais lentos e às vezes menos visíveis como Mogi das Cruzes e Suzano [na região metropolitana de São Paulo], onde já nos apresentamos. A perspectiva de aliar um olhar pessoal com depoimentos recolhidos na Vila Itororó e na Vila Maria Zélia, em confronto com o contexto de transformação urbana, a especulação imobiliária, a criminalização da pobreza e a fragilização dos laços comunitários, formam um panorama fértil para os espectadores se verem e refletirem sobre esse contexto, o que nos parece que tem gerado reações muito estimulantes para o público.
Os moradores da Vila também assistiram a uma apresentação do Cidade Submersa no ano passado. Como foi esse encontro entre as famílias e o coletivo?
Foi a finalização simbólica desse longo encontro e caminhos que traçamos juntos. Já vínhamos fazendo algumas mostras pontuais da nossa criação na própria Vila Itororó, inclusive um ensaio aberto contendo parte da peça dentro da piscina da Vila. Mas foi na estreia, com o auxílio da administração da Casa das Caldeiras que forneceu um ônibus e onde fizemos nossa primeira temporada, junto das nossas famílias e dos velhos e novos amigos, que concretizamos nosso processo com muita emoção. Não sei dizer ao certo o que eles sentiram, mas fizemos questão de dedicar, agradecer e abraçar cada um e recebemos muitos abraços carinhosos, e vimos rostos solidários, olhos marejados, sorrisos abertos de quem se viu retratado, reconheceu seus vizinhos e também viu sua história e esse contexto tenso em que vivem mostrado dentro da peça. E para nós foi uma satisfação imensa "concluir" esse projeto, que não teve qualquer financiamento público ou pa trocínio, de forma íntegra e ética, reconhecendo que tivemos muitas dificuldades, limites, discordâncias e crises dentro do próprio processo com a Vila e seus moradores, assumindo nossas diferenças, mas, sobretudo, valorizando o que nos une e o que construímos juntos. Sem esquecer, é claro, da participação espontânea das crianças da Vila durante essa apresentação, que respondiam e cantavam juntos com a gente, tornando único esse encontro.
A Prefeitura argumenta que a Vila Itororó não está sendo aproveitada em seu potencial e, para isso, deve ser transformada em centro cultural, o que deve acarretar o despejo das famílias. Como você, que integra um coletivo de cultura, avalia essa separação entre patrimônio histórico-cultural e a questão da moradia?
O que está em jogo no problema com a Vila Itororó são várias coisas. Além do processo higienista, dos interesses financeiros explícitos e da especulação imobiliária, existe dentro disso uma visão elitista sobre o que é cultura. A Vila com seus moradores possui uma riqueza cultural enorme e diversa, que talvez precisasse ser estimulada, e isso em si já anularia em parte a argumentação da Prefeitura. Se o caso é também ampliar o uso por pessoas de fora da Vila, a experiência do Impulso Coletivo e do Mapa Xilográfico na Vila Itororó é uma alternativa, pois nossas ações culturais compatibilizavam e estimulavam tanto a relação dos moradores com a arte, como também com a população da cidade, pois traziam pessoas de fora que podiam conhecer a Vila, como foi o caso da Vilada Cultural, que ocupou a Vila Itororó com 12 horas ininterruptas de apresentações artísticas e culturais em outubro de 2009. Nesse sentido, o caso da cidade de Para napiacaba também é exemplar, pois lá o poder público soube conjugar a vivência das pessoas que moram ali com uma iniciativa turística num local histórico. Além do mais, a Vila Itororó, por sua peculiaridade arquitetônica, geográfica e importância histórica, já serviu de cenário para inúmeros clipes, longas metragens, documentários, novelas e de campo para pesquisas de estudiosos de diversas áreas do conhecimento. Cultura não é o que falta na Vila Itororó, sem esquecer da região onde está localizada, tão rica culturalmente como é o Bixiga. A história da Vila Itororó está feliz e irremediavelmente atrelada e impregnada pelas famílias que lá também construíram suas histórias, muitas ao longo de mais de quatro décadas e mais de quatro gerações, e ao contrário do que se pode pensar, esse é caso da maioria das famílias. Como falei anteriormente, o que interessa é conhecer a Vila junto desses olhares que deixam diariamente suas marcas naquela s paredes, a memória viva da Vila não é só os prédios, mas é esse diálogo cotidiano que olha pela janela, joga futebol na rua e conversa no portão. É óbvio que as casas precisam ser reformadas, pois alguns moradores vivem em condições muito precárias e insalubres, mas ver a Vila Itororó pintada de branco ou bege, com restaurantes e mesinhas na rua, ajuda pouco a entender quem fomos e quem somos. Hoje, como ela está, é nosso espelho e escancara a história da urbanização da cidade São Paulo, desde os seus primórdios nos anos 20, a evasão da elite financeira do centro na década de 70, o tratamento dado à população pobre hoje e a recente revalorização do centro paulistano.
Veja trechos da peça em http://impulsocoletivo.
SERVIÇO:
Cidade Submersa, da companhia de teatro Impulso Coletivo
Dias 20 (sábado, 20h) e 21 de agosto (domingo, 18h)
Centro Cultural da Juventude Ruth Cardoso (Avenida Deputado Emílio Carlos, 3.641, Vila Nova Cachoeirinha, zona norte de São Paulo).
Entrada franca (Retirar ingressos com 1 hora de antecedência na recepção)
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