DO DIREITO A CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA: breve diálogo sobre defesa dos direitos da infância e os entraves em sua garantia plena na sociedade de classes.
Camila Gibin*
A história das crianças e dos adolescentes no Brasil é fortemente marcada por opressões praticadas pelos detentores do poder contra este segmento da população. Seja no período colonial - com a prática jesuítica de aculturamento contra as comunidades primitivas, sendo as crianças alvos essenciais desta violência - seja no período escravocrata - com a exploração da força de trabalho infantil - seja na inserção dos pequenos nas fábricas, durante o início do século XX; ou até mesmo nas frequentes políticas “correcionais” para a juventude, tais ações vêm fortemente marcadas por uma política higienista e controladora que em todos os períodos demonstrou que a concepção de infância e juventude dos dominantes era a de um segmento marginalizado que necessitava apenas instituições para “readequá-la” ao jogo de um sistema injusto e desigual.
A institucionalização da infância (pela Igreja, pelo Estado e, atualmente, pelas ONG´s) surge com propósitos específicos em cada contexto, porém enquadra-se em sua totalidade em políticas de condicionamento moral e comportamental e de controle das crianças e dos adolescentes, vistos como delinquentes em potencial.
É neste contexto e nesta prática de institucionalização dos direitos que, atualmente, vemos o debate referente ao direito das crianças e dos adolescentes à convivência familiar e comunitária. No entanto, o que vem se discutindo centralmente foge a uma reflexão mais profunda que perpasse aos modelos de relações humanas que temos tido e as necessidades de transformá-las para garantir de fato uma nova cultura que permita a responsabilização pela infância por parte do coletivo da sociedade.
Os debates se limitam em refletir, apenas, na elaboração de políticas sociais/projetos e programas institucionais que venham garantir a inserção das crianças e dos adolescentes em ambientes socioeducativos ou trabalhos de sociabilização com famílias, justificando isto como a defesa ao direito da convivência familiar e comunitária. Porém, o que devemos compreender é que o significado deste direito extrapola os limites institucionais e que o direito a efetivação de vínculos afetivos da comunidade é algo que deve estar inserido na cotidianidade, e não entre muros e CNPJ´s.
A experiência das comunidades indígenas nos mostra o quanto a infância e a juventude são de fato significativas e respeitadas quando, mesmo que cada criança tenha seu referencial de pai e mãe biológicos, há um coletivo que se responsabiliza e responde pelo processo educativo destes, compreendendo que todos, em qualquer condições, devem estar dispostos a acolher e estar junto desta ao que for necessário.
Estas experiências não são tão diferentes quando nos deparamos com as vivencias em algumas cidades interioranas ou bairros periféricos, nos quais os próprios vizinhos acolhem as crianças, independente dos fatores biológicos/familiares, sendo todos os moradores do local cuidadores/educadores em potencial. Claro que não são em todos os espaços que as relações se dão de maneira harmoniosa, porém é preciso compreender esta problemática e relacionarmos com os processos históricos, observando que a desunião, as relações egoístas e individualista estão diretamente relacionadas ao que Engels nos apresenta como a origem da família e da propriedade privada, que redimensiona, inclusive, os membros da família (filhos e mulher) como propriedades do pai (patriarcado), visualizando-os como meros objetos, descaracterizando-os como sujeito pertencente a um coletivo.
Por isto há a necessidade de colocarmos também em pauta ao falar de convivência familiar e comunitária de que tipo de família estamos falando na atualidade e qual modelo defendemos, em vista de que as politicas publicas se centram na questão familiar em suas diretrizes mas não oferecem em seu bojo reflexivo as dimensões da família hoje, a qual parte da premissa do modelo burguês. Se o modelo familiar é na perspectiva da defesa da propriedade e de relações individualistas, qual o fundamento real e o avanço em se defender as politicas que centram trabalhos na instituição familiar?
Sem duvida alguma há a necessidade de ações que fortaleçam a família e a comunidade, mas devemos nos questionar os limites impostos pelas politicas sociais que, dentro de uma estruturação já falha não consegue garantir questões objetivos/materiais, nem menos subjetivas/emocionais/afetivas. Devemos, portanto, ampliar nossa percepção para muito além da dimensão institucionalizada das politicas, reconhecendo que estas não suprem de fato as necessidades do publico infanto-juvenil e de nenhum outro segmento, visto que a defesa pelos direitos da infância está estritamente ligada a um processo de luta de classes.
Com o surgimento do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária (2006), que pretende elaborar, normatizar e padronizar politicas publica que viabilizam o cuidado com a família para prevenir que a criança ou o adolescente perca os vínculos familiares ou resgatar estes, tendeu-se mais uma vez a burocratizar as ações e a não aprofundar o debate.
Falar de convivência é falar de todos os espaços e aspectos da vida e não da necessidade de uma politica especifica para tal, fragmentando novamente o entendimento de como/que maneira, em quais circunstancias se deve trabalhar e praticar a ideia de convivência.
Antes tínhamos em nossa história o papel de Juízes que se apoderavam das decisões relativas a vida da infância, como se esta fosse de posse do Judiciário. Já nos dias atuais, temos a manutenção da ideia de propriedade, mas entregando a responsabilidade e o domínio pleno à família (ao pai, especialmente), descaracterizando a responsabilidade do Estado e da sociedade no cuidado do publico infanto-juvenil, indicando uma cultura de culpabilização da família pelas questões vivenciadas pela criança, mesmo que a origem da problemática fosse, antes de tudo, a própria logica estrutural da sociedade que não consegue garantir condições objetivas e subjetivas às pessoas para que se relacionem e cuidem com qualidade de seus filhos. É somente com os processos de lutas pelos direitos da criança e do adolescente que se consegue alterar esta concepção, firmada em lei, pontuando que todos são responsáveis pela infância e juventude no Brasil e que este segmento tem ainda direito a convivência por laços afetivos.
Problematizar a centralidade da família nas políticas sociais é compreendermos que, apesar das diversas formas de organização familiar da atualidade, a categoria “família” não corresponde como um elemento explicativo da realidade, sendo então a expressão múltipla de formas de sobrevivência da classe trabalhadora na sociedade capitalista, pautada no modelo de família burguesa, com relações individualistas e desumanizadoras, o que nos indica a impossibilidade dessa sociedade de classes garantir de fato uma convivência social harmoniosa e plena.
*militante do Fórum Regional de Defesa do Direito da Criança e do Adolescente – Sé e integrante do Coletivo Feminista Anastácia livre
Camila Gibin*
A história das crianças e dos adolescentes no Brasil é fortemente marcada por opressões praticadas pelos detentores do poder contra este segmento da população. Seja no período colonial - com a prática jesuítica de aculturamento contra as comunidades primitivas, sendo as crianças alvos essenciais desta violência - seja no período escravocrata - com a exploração da força de trabalho infantil - seja na inserção dos pequenos nas fábricas, durante o início do século XX; ou até mesmo nas frequentes políticas “correcionais” para a juventude, tais ações vêm fortemente marcadas por uma política higienista e controladora que em todos os períodos demonstrou que a concepção de infância e juventude dos dominantes era a de um segmento marginalizado que necessitava apenas instituições para “readequá-la” ao jogo de um sistema injusto e desigual.
A institucionalização da infância (pela Igreja, pelo Estado e, atualmente, pelas ONG´s) surge com propósitos específicos em cada contexto, porém enquadra-se em sua totalidade em políticas de condicionamento moral e comportamental e de controle das crianças e dos adolescentes, vistos como delinquentes em potencial.
É neste contexto e nesta prática de institucionalização dos direitos que, atualmente, vemos o debate referente ao direito das crianças e dos adolescentes à convivência familiar e comunitária. No entanto, o que vem se discutindo centralmente foge a uma reflexão mais profunda que perpasse aos modelos de relações humanas que temos tido e as necessidades de transformá-las para garantir de fato uma nova cultura que permita a responsabilização pela infância por parte do coletivo da sociedade.
Os debates se limitam em refletir, apenas, na elaboração de políticas sociais/projetos e programas institucionais que venham garantir a inserção das crianças e dos adolescentes em ambientes socioeducativos ou trabalhos de sociabilização com famílias, justificando isto como a defesa ao direito da convivência familiar e comunitária. Porém, o que devemos compreender é que o significado deste direito extrapola os limites institucionais e que o direito a efetivação de vínculos afetivos da comunidade é algo que deve estar inserido na cotidianidade, e não entre muros e CNPJ´s.
A experiência das comunidades indígenas nos mostra o quanto a infância e a juventude são de fato significativas e respeitadas quando, mesmo que cada criança tenha seu referencial de pai e mãe biológicos, há um coletivo que se responsabiliza e responde pelo processo educativo destes, compreendendo que todos, em qualquer condições, devem estar dispostos a acolher e estar junto desta ao que for necessário.
Estas experiências não são tão diferentes quando nos deparamos com as vivencias em algumas cidades interioranas ou bairros periféricos, nos quais os próprios vizinhos acolhem as crianças, independente dos fatores biológicos/familiares, sendo todos os moradores do local cuidadores/educadores em potencial. Claro que não são em todos os espaços que as relações se dão de maneira harmoniosa, porém é preciso compreender esta problemática e relacionarmos com os processos históricos, observando que a desunião, as relações egoístas e individualista estão diretamente relacionadas ao que Engels nos apresenta como a origem da família e da propriedade privada, que redimensiona, inclusive, os membros da família (filhos e mulher) como propriedades do pai (patriarcado), visualizando-os como meros objetos, descaracterizando-os como sujeito pertencente a um coletivo.
Por isto há a necessidade de colocarmos também em pauta ao falar de convivência familiar e comunitária de que tipo de família estamos falando na atualidade e qual modelo defendemos, em vista de que as politicas publicas se centram na questão familiar em suas diretrizes mas não oferecem em seu bojo reflexivo as dimensões da família hoje, a qual parte da premissa do modelo burguês. Se o modelo familiar é na perspectiva da defesa da propriedade e de relações individualistas, qual o fundamento real e o avanço em se defender as politicas que centram trabalhos na instituição familiar?
Sem duvida alguma há a necessidade de ações que fortaleçam a família e a comunidade, mas devemos nos questionar os limites impostos pelas politicas sociais que, dentro de uma estruturação já falha não consegue garantir questões objetivos/materiais, nem menos subjetivas/emocionais/afetivas. Devemos, portanto, ampliar nossa percepção para muito além da dimensão institucionalizada das politicas, reconhecendo que estas não suprem de fato as necessidades do publico infanto-juvenil e de nenhum outro segmento, visto que a defesa pelos direitos da infância está estritamente ligada a um processo de luta de classes.
Com o surgimento do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária (2006), que pretende elaborar, normatizar e padronizar politicas publica que viabilizam o cuidado com a família para prevenir que a criança ou o adolescente perca os vínculos familiares ou resgatar estes, tendeu-se mais uma vez a burocratizar as ações e a não aprofundar o debate.
Falar de convivência é falar de todos os espaços e aspectos da vida e não da necessidade de uma politica especifica para tal, fragmentando novamente o entendimento de como/que maneira, em quais circunstancias se deve trabalhar e praticar a ideia de convivência.
Antes tínhamos em nossa história o papel de Juízes que se apoderavam das decisões relativas a vida da infância, como se esta fosse de posse do Judiciário. Já nos dias atuais, temos a manutenção da ideia de propriedade, mas entregando a responsabilidade e o domínio pleno à família (ao pai, especialmente), descaracterizando a responsabilidade do Estado e da sociedade no cuidado do publico infanto-juvenil, indicando uma cultura de culpabilização da família pelas questões vivenciadas pela criança, mesmo que a origem da problemática fosse, antes de tudo, a própria logica estrutural da sociedade que não consegue garantir condições objetivas e subjetivas às pessoas para que se relacionem e cuidem com qualidade de seus filhos. É somente com os processos de lutas pelos direitos da criança e do adolescente que se consegue alterar esta concepção, firmada em lei, pontuando que todos são responsáveis pela infância e juventude no Brasil e que este segmento tem ainda direito a convivência por laços afetivos.
Problematizar a centralidade da família nas políticas sociais é compreendermos que, apesar das diversas formas de organização familiar da atualidade, a categoria “família” não corresponde como um elemento explicativo da realidade, sendo então a expressão múltipla de formas de sobrevivência da classe trabalhadora na sociedade capitalista, pautada no modelo de família burguesa, com relações individualistas e desumanizadoras, o que nos indica a impossibilidade dessa sociedade de classes garantir de fato uma convivência social harmoniosa e plena.
*militante do Fórum Regional de Defesa do Direito da Criança e do Adolescente – Sé e integrante do Coletivo Feminista Anastácia livre
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